sexta-feira, 9 de maio de 2008

A crise criativa e o conceito de Evolon (texto para discussão em 12/05/08)


No trabalho já citado de Bassalo, encontramos a pergunta: “Existirá um padrão no ato criador?” (1986:1837). O autor cita a proposta de Moles (1971), onde o processo criativo é visto como desenvolvido através de 5 etapas: preparação, incubação, iluminação, verificação e formulação. Dentro dessa proposta, vemos que as 3 já citadas formas de intuição podem acompanhar a crise criadora em todas as suas etapas; é esperado ainda que nas finais, verificação e formulação, tenhamos um peso maior da racionalidade. Se há um padrão no ato de criação e se este ato desenvolve-se segundo as fases demarcadas, é possível encontrar indícios de que tal crise específica é reflexo de uma crise mais ampla? Criar é o exercício de funcionalidade cerebral no contexto de um sistema aberto (sujeito) em seu meio ambiente perturbado (Universo). O ato de criação visa, entre outras coisas mais específicas, a permanência do vivo.

A permanência sistêmica parece ser o parâmetro que governa os processos evolutivos: na tentativa de permanecer, sistemas abertos permanentemente sujeitos à crise reestruturam-se e reorganizam-se, adaptam-se e atingem metaestabilidade, abandonando-a sob novas crises e cumprem uma transformação no tempo, onde um parâmetro não conservado chama a atenção: a complexidade. Na tentativa de permanecer, sistemas abertos encontram como solução crescer em complexidade, o que parece ser o caminho seguido pelos sistemas vivos e notadamente, pelo ser humano. Mais ainda, do ponto de vista de uma Ontologia peirceana, ou seja, segundo as propostas de Charles Sanders Peirce, o crescimento da complexidade pode ser um princípio agindo em toda a realidade, não só no reino dos sistemas vivos (Ibri, 1992:46). Nesse sentido, o ato de criar é uma crise denotativa de um alto nível de complexidade viva. Criar, para nós, é viver e os cientistas e artistas são aqueles que mais intensamente estão sujeitos à esse impulso vital.

Parece-nos que só há uma crise sistêmica complexa mais poderosa do que essa: o criar afetivo. Mas poucos da espécie humana parecem conseguir a plenitude desse processo.

Se o ato de criação é visto como decorrente de uma crise e se crises são típicas do evolutivo, procuraremos a resposta, quanto à possível existência de um padrão no ato criador, em propostas evolutivas gerais e ontológicas. A proposta que nos parece mais adequada ao estudo de uma crise criadora é sugerida por Mende (1981:196) em seu conceito de Evolon. Esta, como afirma o autor, é uma proposta fenomenológica, apoiada em uma Termodinâmica de sistemas abertos, da dialética organização / desorganização, entropia / negaentropia. A proposta de Mende é feita no contexto de uma Teoria Geral dos Sistemas e é candidata ao status ontológico.

Segundo o autor, existe um passo evolutivo elementar ou unitário, por ele denominado evolon. Seria a transição de um nível de estabilidade ao próximo; o que normalmente temos chamado de “crise” é essa transição. Por essa idéia, o processo evolutivo não é uma transformação suave, monotônica no tempo: os sistemas em evolução “apegam-se” à estabilidade em seu esforço de permanecer. O meio ambiente possui flutuações; o próprio sistema, dependendo de sua complexidade, possui flutuações internas; quando essas flutuações “entram em ressonância” e certos parâmetros típicos da natureza do sistema são ultrapassados em valores críticos, surge uma amplificação (um processo não-linear) da flutuação que atira o sistema em uma crise de instabilidade. As idéias quanto à parâmetros críticos e flutuações gigantes são bem desenvolvidas por Prigogine (1980:142) e citada por esse autor para o contexto humano (Prigogine, 1976:93).

Segundo Mende, uma sequência de evolons constitui uma escada evolutiva, pela transição repetitiva de um estado estacionário ao próximo. Atingir o estacionário, na verdade o metaestável, é uma imposição de permanência. As órbitas históricas que descrevem a evolução do sistema tendem à regiões de estabilidade em seu espaço de estados histórico: os extremos do evolon são regidos por atratores. A idéia de evolon, por conter as crises típicas das estruturas dissipativas de Prigogine (a rota do caos para a organização) e as crises típicas de processos de caos determinista (a rota da organização para o caos) contém fenomenologicamente a fusão de idéias ainda não bem conciliadas, em paradigmas instáveis e por enquanto não plenamente compatibilizados (paradigmas também são sistemas em evolução). Em nosso entender, processos evolutivos só poderão ser efetivamente estudados através da fusão dessas rotas.

Para Mende, o evolon pode ser dividido em duas evoluções essencialmente diferentes, que são:

Evolução tipo I: (Extensiva) - crescimento hiperbólico - escape do nível de estabilidade (abandono de um atrator). Compreende as fases 1 e 2.

Evolução tipo II: (Intensiva) - crescimento parabólico - aproximação para um novo atrator. Compreende as fases de 3 a 7.

O termo “extensivo” deve ser entendido no contexto como indicativo de um processo de crescimento quantitativo, onde alternativas são buscadas pelo sistema independentemente de seu valor relativo. É uma estratégia de expansão. O termo “intensivo” remete ao refinamento de alternativas produtivas, férteis. É o processo de crescimento qualitativo. Uma estratégia que investe na complexidade em qualidade. A seguir descreveremos simplificadamente cada fase do evolon, respeitando a terminologia empregada pelo autor. Como este é um ecólogo, os termos são da Biologia e da Ecologia. Mas é possível generalizar o evolon descrevendo-o em termos da Teoria Geral de Sistemas.

Fase 1: Rompimento - Um parâmetro ultrapassou seu limite crítico. Uma instabilidade é amplificada e manifesta-se macroscópicamente; este é um efeito de acoplamento de mecanismos de crescimento independentes ou a integração de módulos em uma nova função; as condições de fronteira filtram e estabilizam o “ruído” de emergências aleatórias (novas soluções); essa fase é chamada fulguração ou inovação.

Fase 2: Preparação ou Fase Latente - A cooperatividade gerada na fase anterior permite crescimento hiperbólico. Condições básicas são criadas para o rápido uso de reservas potenciais identificadas. Indicadores externos mudando rapidamente: limites fixos são perdidos; é necessário tempo para reorganização.

Fase 3: Expansão - Crescimento hiperbólico com expoente constante; crescente diversidade em novas espécies devido à uma pequena pressão de seleção; velocidade de crescimento determinada pelas taxas internas crescentes de crescimento; essa fase faz uso da maior quantidade de fluxos de reserva.

Fase 4: Transição - Restrições das fronteiras são sentidas; as taxas de crescimento começam a amortecer devido ao aclopamento com o meio ambiente; o crescimento é adaptado ao que o meio ambiente é capaz de fornecer; o acoplamento entre meio e sistema atinge mais e mais os subsistemas internos; em sistemas biológicos as fronteiras são finalmente fixadas nos genomas (internalização das fronteiras); elementos crescendo em separado unem-se em um único sistema (a densidade levando a acoplamento e integração); o perigo de extinção é máximo nessa fase.

Fase 5: Maturação - Refinamento dos mecanismos existentes; sincronização e coordenação de subsistemas; intensificação dos processos inovados; importância crescente de economia em matéria e energia; processos de reciclagem em estabelecimento; otimização de taxas de reciclagem, ciclos vitais, taxas de corrosão e transporte; desacoplamento de subprocessos (no futuro, permitindo novas combinações); repetição e especialização (por exemplo, genes multifuncionais se repetem e se especializam em mutações não letais); o desacoplamento passa a atingir os subsistemas maiores até que o sistema total desacopla do meio formando uma estrutura única; a instabilidade nascente em subsistemas tornados quase autônomos é amortecida e estabilizada em um certo nível, de forma a não comprometer o todo sistêmico.

Fase 6: Clímax - Novo estado estacionário é aproximadamente atingido; a evolução do clímax é superposta por flutuações; este estado pode durar muito se o meio ambiente é constante, os “feedbacks” entre sistema e ambiente são pequenos e as perturbações dos subsistemas não são importantes; na ausência de impulsos criativos o sistema pode enrijecer em relação ao meio ambiente (destaque nosso).

Fase 7: Instabilidade - Processos evolutivos e flutuações dos subsistemas influenciam o sistema mais e mais, levando finalmente à instabilidade; mais tarde, desafios do meio ambiente ou dos subsistemas podem ser suficientes para tornar o sistema instável e se houver uma força de controle para amplificação das instibilidades, um rovo rompimento começará.

A proposta ontológica contida na Teoria Geral de Sistemas e na idéia de auto-similaridade sugerem que essa crise, tão fenomenológicamente detalhada por Mende, seja comum a todos os sistemas no Universo, desde estrelas em evolução à sistemas conceituais típicos do conhecimento humano. A leitura feita no domínio do gnosiológico é resumidamente a seguinte:

Seja um sujeito em determinado momento mundividente portador de um corpo de conhecimento sob a forma de um sistema conceitual. Por uma questão de conforto mental, existe uma tendência governada pelo parâmetro permanência, para a crença de que esse sistema é suficiente, logo podendo ser conservado. Mas os sistemas conceituais são abertos e sujeitos à instabilidades. Além de flutuações emergentes no corpo de conhecimento disponível (não o possuído pelo sujeito), podem surgir flutuações geradas por processos mentais desse sujeito, de forma talvez incontrolada - cientistas e artistas costumam, de preferência, estar sujeitos à essa forma de instabilidade. Esta, gerada pelo problema inesperado ou por aquele procurado, dispara um evolon no sistema conceitual. A fase de rompimento significa uma crise, de algum nível, no conjunto de hábitos desenvolvidos pelo criador, o que gera nele angústia e desconforto. A crise nos hábitos é uma crise em crenças. Sobre a tendência ao conservador e a angústia da crise, podemos citar Peirce (1975:77): “A dúvida é um estado desagradável e incômodo, de que lutamos por libertar-nos e passar ao estado da crença; este é um estado de tranquilidade e satisfação que não desejamos evitar ou transformar na crença em algo diverso. Pelo contrário, apegamo-nos tenazmente não apenas a crer, mas a crer no que cremos”.

Notar que o lutar para manter a crença não é só típico do criador quando indivíduo, mas também na comunidade mobilizada por um paradigma - essa é a fonte mais comum de resistência à inovações. Algum parâmetro (Emocional? Racional? Volitivo? Não sabemos) apoiado na tríade razão, sentimento e vontade é ultrapassado em uma certa intensidade, crítica, de forma relativa - como relativismo individual, um sujeito pode ser mais ou menos acessível às perturbações geradoras do rompimento. O sistema conceitual, rompido, terá que ser reestruturado e reorganizado, diante da “novidade” imposta pelo meio ambiente ou gerada internamente no sistema. Lembramos aqui, de passagem, o modelo piagetiano que fala em assimilação e acomodação via uma equilibração. É a mesma idéia de rompimento, para que a assimilação seja possível, concretizada em uma acomodação que levará à uma meta-equilibração.

Na fase latente, o criador busca consciente ou inconscientemente toda a sua autonomia mental, sob a forma de conhecimentos, técnicas, estratégias, métodos, hábitos, etc. A cooperatividade, citada por Mende, reflete a necessidade de levar em consideração todas as alternativas possíveis e isso é permitido pelo rompimento da estrutura conceitual.

Na fase de expansão, a “crescente diversidade em novas espécies devido à uma pequena pressão de seleção” corresponde à geração de hipóteses e/ou abduções, de forma mais livre e ousada porque mais livre do conservadorismo do sistema anterior. Mas essa fase de muita ousadia é limitada pelas exigências impostas pela estrutura objetiva do mundo - aqui começa a transição. Um novo sistema conceitual começa a ganhar identidade, basicamente através de um critério de coerência; o acoplamento com o meio ambiente é feito por novas evidências, novos dados e por um exercício lógico (que inclui abdução) - traços de uma “reconstrução” do processo criativo surgem portanto à nível do lógico.

Na fase de maturação, ficamos em maioria com os processos de reconstrução lógica. Em alguns casos, quando a formalização é possível, o controle discursivo supera todo o tácito e intuitivo das primeiras fases da crise. E finalmente, reconstruído e reorganizado o sistema conceitual, atingimos o clímax e a possibilidade ( e talvez necessidade) de nova crise.

O evolon descrito acima sugere que, do ponto de vista de dimensionalidade de mundividência, a crise é imposta de súbito (quickly and hidden nas palavras de Mende) e provoca movimentos mentais que inicialmente são muito intuitivos, tácitos e mesmo inconscientes. Na medida em que o evolon se desenvolve, temos a transição para a reconstrução lógica consciente. Mas notamos que a fase intuitiva parece ser do tipo racional. Aquela emotiva dever surgir também em um evolon, mas em um contexto mais amplo do que o de uma linha específica de pesquisa.

No trabalho de Bassalo encontramos a proposta de Poincaré e outros estudiosos, quanto à estrutura do processo criativo em termos das fases: preparação, incubação, iluminação, verificação e formulação. A preparação é a fase em que o cientista toma consciência do corpo de conhecimento disponível (também chamada de documentação). A incubação é admitida como atividade não-consciente, ocupando um lapso curto ou longo. A iluminação é identificada com a intuição mesma, a chamada inspiração. A verificação e a formulação geram em definitivo o novo sistema conceitual. Tendo em vista a estrutura do evolon, vemos que podemos pensar em um paralelo entre este e a proposta de Poincaré:

Rompimento → Rompimento

Fase latente → Preparação e Incubação

Expansão → Iluminação

Transição → Verificação

Maturação → Formulação

Clímax → Clímax

Na proposta de autores como Poincaré, Kneller e Moles, citados por Bassalo, a fase de preparação é também uma fase de documentação, que em metodologia compreende a tentativa de acessar o corpo de conhecimento disponível ou o “estado da arte”. Já a noção de rompimento é mais profunda: significa o rompimento de um sistema de idéias e crenças, que pode conter a documentação como um esforço de diminuir a angústia da dúvida e até mesmo salvar as idéias em crise (pela utilização de hipóteses ad hoc, que geralmente tentamos manter usando o critério de coerência). Também temos usado expressões como “angústia” ou “incômodo”, segundo os escritos já citados de Peirce. Mas também temos que admitir que muitas vezes o rompimento traz ao criador uma curiosidade intensa, que costuma ser fonte de excitação e prazer quase lúdicos.

A criação é jogada como um jogo, um “quebra-cabeças” - o ato de criação surge não como a necessidade de superar incertezas, mas como um movimento de plenitude do criador. As três últimas fases do evolon parecem equivaler às últimas do processo criativo - transição, maturação e clímax é o que obtemos ao longo da verificação e formulação.

A comparação feita indica o ato criador como um processo evolutivo do sujeito, admitido este último como um sistema aberto em transição. Conhecer, logo transformar-se, é crescer em complexidade. Sem simplificar o problema pela aplicação de idéias reducionistas, acreditamos que as idéias discutidas até aqui encontram reflexos em nosso conhecimento atual do cérebro humano, como desenvolvido nas chamadas ciências cognitivas. Vamos prosseguir em nosso paralelo lembrando que isso não significa admitir que possamos reduzir os processos estudados à algum aspecto simples e particular do cérebro. Continuamos, no nível do concreto, diante de um sistema de altíssima complexidade, tal que nossa discussão fica restrita à aspectos globais em organização e estrutura, nada mais.

8 comentários:

Unknown disse...

Nossa que texto enorme, nem deu pra ler. quem tem tempo pra ler tudo isso, gente? O povo do quarto ano da fap ja deveria saber que estamos vivendo na era da urgência, e tbm deveria saber que textos deste tamanho geralmente não são lidos em blogs.que tal resumir esse, heim?
Achei legal a iniciativa, mas textos neste formato são chatos demais.

Unknown disse...

Caro Airton.... Concordo com você que estamos na "era da urgência"... porém se você optar por fazer todas as coisas com a velocidade que essa era propõe, você certamente adoecerá. Sentar para ler um bom texto (longo ou não), chama-se aquisição de conhecimento. E se um texto "desse tamanho", não é de seu interesse, pode ter certeza que para alguém será. E este blog tem o intuito de TROCAS, onde todos temos espaço para debater temas, defender teorias, expor seus trabalhos, mas sem entrar na mesquinharia de "que tal resumir" ou "vcs já deveriam saber que".... enfim.... Você é muito bem vindo aqui se estiver disposto a trocar, senão a internet está cheia de blogs "resumidos", ok?!

Abraço
Thamy - 4ºano

4º ano de Dança/FAP disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
4º ano de Dança/FAP disse...

Gostaria de articular com o comentário de Airton:
N ´ pq "es" n r a urgência q agr n prstr 1 tmp pr aprf. conhecimentos e, cro eu, n ´ ~ smpls for. 1 m txts "resumidos". Dv sr bm dif. e a pes. tm q sr mto b. nto.
Et Blog tm 1 dif. e acdt q it n sj 1 (.) (-) cr colega. E fi crdo pr post. d txt e rflx d pesq. q est. desenv. lg, ets disp. 1 epç pr trc. d cnhcto. Crt. q. cd 1 t sa op. (+) dvs sbr od stá ntrdo. n .net pr pdr crtcr.
Sgst s. bm vds, (+) bm sns tbm...
Tentei resumir o máximo que pude!
Abraços,
Thaís 4º ano

José Erigleidson disse...

Excelente!
Abs

t.diógenes disse...

que texto foda!
fundamental e elucidativo.

po airton, o prazer demanda tempo - já dizia rubem alves, e os ensinamentos do sexo têntrico.. hehehe

Toninho Buta disse...

Venho a 50 anos, buscando resposta para minha curiosidade, ultrapassei a fase da angustia da ingnorância, e afirmo; A angustia e o medo do estranho existe, mas se nos auto orientamos para transformar a criação tanto utilitária, como ludica, para ocupar nossa mente e atuação pratica formamos hábitos e habilidade, e a facilidade em e do saber,se amplia.
Obrigado pela síntese de um de um tema tao complexo.
T.Buta.

Beto disse...

Olá, gostaria de acrescentar o crédito desse conteúdo (senti falta), um grande mestre q faleceu recentemente: Prof Dr. Jorge de Albuquerque Vieira e esse texto está no livro "Teoria do Conhecimento e Arte - Formas de Conhecimento: Arte e Ciência - Uma visão a partir da Complexidade ... Abçs ...