terça-feira, 3 de junho de 2008

Coreografia: gramática da dança - Paulo Paixão*

A nossa proposta para esse espaço é fazer uma breve reflexão sobre aspectos relacionados à idéia de coreografia. Para tanto abordaremos alguns trânsitos associados às práticas e a subjetividades implicadas na emergência e no processo evolutivo de tal idéia. Esperamos que nossos argumentos elaborem um entendimento crítico do ato de criar em dança.

O termo coreografia surge na dança em 1700, na corte de Luiz XIV, para nomear um sistema de signos gráficos, notação da dança, capaz de transpor para o papel o repertorio de movimentos do balé daquela época. Seu criador Raoul Auger Feuillet, mestre de balé, introduziu seu neologismo que literalmente quer dizer a grafia do coro.

O sistema de Feuillet foi um instrumento de reprodução em larga escala das danças criadas pela burguesia francesa. O leitor ciente do mecanismo de “leitura” (tradução dos signos gráficos em movimentos), era capaz de reconstituir as danças realizadas por corpos da nobreza e por ilustres bailarinos da Academia Real de Balé. Como uma máquina de fazer cópias de danças, a coreografia espalhou-se pela Europa sendo traduzida para o inglês, alemão, espanhol, italiano e português. Durante vinte e dois anos Feuillet e seu aluno Dezais publicou cerca de trinta coleções de danças onde em cada uma figurava até cinco danças, estas, somadas a publicações feitas por diversos outros autores, elevam em muito esse número.

A utilização do corpo na dança como elemento retórico(1), um longo processo de codificação de movimentos culminado com a institucionalização de um léxico próprio como base para a criação das danças, a facilidade com que se aprendia o método coreografia e o constante diálogo estabelecido pelo autor com seus leitores, através dos prefácios de seus livros foram alguns elementos e referências presentes naquele ambiente, ofereceram condições propicias para a implementação e sobrevivência desse sistema por mais de um século.

Não se sabe ao certo como aconteceu a mudança no emprego do termo coreografia como sistema de notação para estrutura de organização dos movimentos do corpo no tempo e no espaço, a nossa hipótese é de que como em outros casos, a marca coreografia tenha assumido tamanha popularidade que substituiu o produto Dança(2). Sabe-se, no entanto que foi Serge Lifar quem publicou o Manifesto coreográfico 1935 onde coreografia aparecia em sua nova acepção. Esse manifesto seguiu a lógica de outros manifestos da época em diferentes áreas da arte(3), não trazia uma sistemática de abordagem prática e sim apresentava linhas gerais, nas quais a arte da dança deveria se pautar.

Seguindo o percurso dos trânsitos da idéia de coreografia, em 1959 Doris Humphrey publica A arte de criar danças, onde sintetiza um pensamento comum entre os artistas de sua época elaborando um manual pedagógico para os criadores de danças (coreógrafos) focalizando a escolha das linhas eficazes, o desenho correto, a qualidade de reconhecer imagens para uma composição harmoniosa, sempre associando tais linhas e imagens com conteúdos expressivos. Em 1971 a publicação de Approaches to nonliteral choreography de Margery J. Truner faz um outro recorte de procedimento, ampliando bastante a discussão em torno da questão, apontando para aspectos como a exploração da gama de expressividade cinética diferente das acionadas nas atividades cotidianas ou dando a estas novas funções, apresentando novos elementos para a análise do movimento como textura e qualidades. Atualmente alguns críticos de dança sustentam a posição de que em se tratando do trabalho realizado por um grupo de artistas da cena européia, não se pode falar de coreografia(4), tais afirmativas usam como argumento as diferenças radicais no modo como eles organizam a cena.

Nos aspectos ressaltados nesse rápido painel evolutivo da idéia de coreografia reincide o entendimento dela como um modelo dado, fixo, e principalmente reproduzível. No nosso entender coreografia é um fenômeno emergente dos processos de comunicação do corpo, uma forma especializada do modo de fazer dança e está sempre em evolução, pois assim como a dança, a coreografia também entra em um fluxo de especialização para garantir a sua permanência se adaptando às novas exigências estabelecidas no acordo entre seus modos de organização e o ambiente, fortalecendo o sistema que a criou, a dança. Por isso, mesmo em se tratando de dança contemporânea pode se falar de coreografia.

Observamos que na arte de tempos em tempos estabilizam-se modos operativos que geram padrões estéticos e reflete o pensamento dos artistas de uma época. A estas metaestabilidades, pensamentos operacionalizados, costumam ser chamados de “estilos” que na dança tem sido normalmente caracterizado pela utilização de determinado vocabulário de movimento ou forma de abordagem espacial, o que difere bastante da abordagem desse grupo de novos criadores da dança. As relações estabelecidas em suas obras giram em torno de uma idéia central construída por muitas conexões, em diferentes níveis, além disso, a concepção de corpo e contexto singular, compartilhadas por muitos deles, fazem de cada obra uma atividade pertinente ao corpo e ou contexto pelos quais foi criada. Muito embora não tenham sido os primeiros a utilizarem essa estratégia(5), constatamos que em seus trabalhos tal característica encontra-se em um outro estágio de elaboração.

Coreografia na contemporaneidade pode ser entendida como a estrutura de conexões entre diferentes estados corporais(6) que figuram em uma dança e dela faz emergir seus nexos de sentidos. Ela é quem regula as relações entre os elementos de uma dança, portanto regula a média de informação veiculada(7) atuando como uma gramática. Toda a sintática de um corpo em movimento no ambiente onde dança sofre uma restrição em relação ao total de suas possibilidades expressivas a fim de possibilitar fluxos semânticos e é a coreografia quem legisla sobre estas restrições. Coreografia pode ser entendida como escrita da dança na medida em que ela é quem permite que a dança seja descrita.

Não é a época em que foi criada que determina a identidade da dança e sim o pensamento que ela articula, nem tão pouco a reprodução de movimentos referenciada no repertório de artistas contemporâneos que vai conceder o status de contemporânea a uma dança, é a capacidade de articular um pensamento do contexto, no corpo dos dançarinos em alto grau de complexidade.

(1)Para um melhor entendimento sobre essa questão ver Dance as text, Mark Franko 1993.

(2)Supomos que tenha ocorrido algo parecido com o fenômeno que acontece com marcas muito populares de esponja de aço, ou alvejante, por exemplo, que entre os consumidores passam a assumir a identidade do produto.

(3)Manifesto futurista em 1910 e o Manifesto Dadá em 1912.

(4)Um bom exemplo desta posição é a do crítico de dança Gerald Siegmund em eu artigo L’absence 2002. Alguns dos mais importantes nomes dessa geração são: Jérôme Bel, Xavier Lê Roy, Boris Charmatz etc.

(5)Referências desse tipo de abordagem é encontrada, por exemplo, no fazer de criadores da Judson Church durante a década de sessenta e setenta.

(6)Para um esclarecimento maior sobre esse conceito ver O erro de Descartes, António Damásio 1994 .

(7)Jorge Albuquerque Vieira nos dá uma boa definição desse termo em Organização e sistemas 1996.


Paulo Paixão* é doutorando do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA

Nenhum comentário: